VOCÊ ESTÁ AQUI

Em 2016, Raul Mourão foi convidado a expor no Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE), em São Paulo. À época, Cauê Alves acabava de assumir a direção artística e a curadoria do museu e acionou o artista para inaugurar uma nova fase do MuBE. O curador cedeu a Mourão a sala principal da instituição e o pátio externo do museu projetado por Paulo Mendes da Rocha. Para a exposição Você Está Aqui, inaugurada em junho de 2016, o artista criou cinco esculturas cinéticas, todas inéditas. Na ocasião, Albano Afonso e Chiara Banfi também mostravam trabalhos em outros espaços do MuBE.

+ Mourão usou tubos e braçadeiras em obras que define como “pop up sculptures”, peças de produção e montagem mais rápidas. Com escalas distintas, elas foram instaladas de forma a dialogar com a arquitetura do museu.

+ No pátio externo, o artista dispôs a maior delas, intitulada Cabeça vazia, morada do diabo, cujo movimento, quando acionado pelo espectador, aproximava o trabalho do prédio de tal forma que a escultura quase tocava a laje do edifício.

Você está aqui

por Cauê Alves

A sentença Você está aqui, título da mostra, geralmente é encontrada em mapas e sistemas de localização. Trata-se de uma indicação de um local preciso dentro de um esquema maior. Mas essa afirmação, fora de um quadro de referência ou da cartografia, perde completamente a sua função de indicar a posição. Aqui indica este lugar que você ocupa, o local onde a mostra acontece, e pressupõe um determinado instante. Num sentido ampliado, mesmo que o aqui não seja fixo, sempre estamos aqui em relação a nós mesmos.

A exposição de Raul Mourão que acontece aqui no MuBE também ressalta esse lugar. A mostra dialoga com a arquitetura do museu e seus espaços. A rampa, os diferentes níveis de piso da grande sala, a marquise da área externa se integram ao trabalho do artista. A matéria-prima das obras são estruturas modulares, uma espécie de esqueleto geométrico usado na construção civil. O processo de montagem das esculturas se dá aqui no museu obedecendo o projeto previamente desenhado. Todos os trabalhos são feitos de tubos, braçadeiras e um pensamento elementar. Um sistema construtivo racional e simples que permite o aparecimento quase instantâneo de enormes construções na paisagem. E elas podem ser desmontadas na mesma velocidade. São estruturas pop-up, que surgem como imagens que saltam de livros infantis.

De fato há um tom lúdico nas peças de Raul Mourão. Elas dançam, equilibram-se como bêbados que pendem de um lado para outro. Mas, em vez de estarem na corda bamba, algumas das formas concebidas pelo artista fazem seu número em barras paralelas. Talvez sejam ginastas que rodopiam com a leveza de atletas, mas sem manter uma postura ereta. Apesar de os movimentos sobre as barras não serem ensaiados, elas nunca caem no chão. As manobras dos cubos e paralelepípedos sobre as barras horizontais são como a performances olímpicas, com paradas de mão, embalos e saltos quase mortais. Mas os movimentos das peças exigem a ação do visitante, que balança os tubos de ferro com ritmos que variam de acordo com a força empregada. Devido ao atrito, o movimento vai decrescendo lentamente até a parada total.

As obras são também aulas de geometria espacial. Cada barra circular se apoia em apenas um ponto sobre a outra, mesmo durante o movimento. Os volumes são inscritos uns nos outros, com partes em interseção. Eles se relacionam a partir de movimentos que variam também de acordo com os ângulos escolhidos pelo artista, pela quantidade de barras e as diferenças de massa entre os sólidos vazados.

A grande obra na área externa se comporta como se flertasse com a arquitetura, em movimentos de aproximação e recuo em relação à marquise do MuBE. Se às vezes a obra parece ameaçar a integridade do prédio, rapidamente ela se mostra amável, como se cortejasse o edifício. De fato, os trabalhos são atraentes, valem-se do vocabulário da construção civil e dialogam diretamente com a arquitetura de Paulo Mendes da Rocha. Em geral, as esculturas de Raul Mourão evocam uma espontaneidade, uma ação descontraída e despretensiosa do corpo do visitante.

O movimento ritmado e o equilíbrio das esculturas entretêm o público, atraem o olhar, sem deixar de provocar questionamentos. Será que a exposição está pronta? A aparência de inacabado e a transparência das peças são relevantes ao chamarem atenção para o processo de construção, para o devir. Na verdade, uma obra de arte, assim como um museu, nunca está pronta, acabada. Ao contrário, eles são abertos, provisórios, intermináveis, sempre sujeitos a outras compreensões e sentidos que estão por vir. Não apenas porque estão à espera do olhar e do toque dos mais diversos públicos, mas, porque eles se transformam, adquirem outros significados com o passar do tempo.

Esses trabalhos de Raul Mourão estão em plena sintonia com o projeto de acervo que está sendo implantado no MuBE. Em vez de ser um lugar que simplesmente abriga obras, o museu está tentando adquirir o direito de realizar projetos dos artistas. Assim, a documentação e a memória do que ocorreu devem ser arquivadas para que possam ser propagadas e realizadas novamente no futuro sem a necessidade da presença física do artista. Mais do que conservar a materialidade de um trabalho, interessa compreender o projeto e as suas variáveis. Em vez de um acervo de objetos, o museu abriga, estuda e realiza obras concebidas pelos artistas como efêmeras, montadas para as exposições e depois desfeitas. Daí a importância do memorial descritivo, depoimentos, informações técnicas e conceituais para a sua execução. As concepções e as ideias do artista são mais relevantes do que os tubos de aço e braçadeiras que compõem o seu trabalho, uma vez que eles podem ser alugados e posteriormente devolvidos aos donos, mas as ideias precisam ser registradas para que eventualmente possam dar vida aos materiais disponíveis no futuro, caso os tubos deixem de ser fabricados. 

As estruturas modulares, usadas em grandes projetos de engenharia, para o sujeito desavisado, poderiam indicar que o prédio do museu passa por alguma reforma. Embora o MuBE esteja bem conservado, conceitualmente está se revitalizando, está em obras. Nos últimos tempos, além de um curador, o museu ganhou nova gestão, nova diretoria, novos associados e conselheiros. O estatuto do museu foi revisto, fizemos um plano museológico e uma grade de exposições mais coerente com o objetivo de construir um museu mais dinâmico. A mostra de Raul Mourão faz parte desse novo MuBE e colabora para uma outra relação da arte com a arquitetura e a paisagem urbana, ressaltando o lugar onde estamos: aqui.

Cauê Alves

Curador-chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Foi curador geral do Museu Brasileiro de Escultura (MuBE) de 2016 a 2020. Professor do Departamento de Arte da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP e do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.

Rolar para cima