SETA BALANÇO JANELA

De volta ao Rio, ainda mantendo ateliê em Nova Iorque, o artista realiza sua sétima exposição individual na Lurixs, a primeira no novo endereço no Leblon. A mostra ocupa a galeria térrea com três obras, realizadas em três diferentes linguagens – fotografia, escultura e pintura.

Segundo o curador, promoveu-se um “estranho jogo de proporções”, no qual as três obras – seta balanço janela – “parecem desproporcionais em relação ao espaço”. Em vez de um retrato realista da cidade, buscou-se antes criar uma sensação: “a de que a cidade entrou pela galeria sem fazer a concessão de se miniaturizar”.

Seta Balanço Janela

por Eucanaã Ferraz

O título da exposição é explícito, ou, ainda, explicita o que está exposto. Tudo está aí. Tudo é síntese. Tudo é 1. Tudo é 3. 

A mostra examina vertentes poderosas – ideias fixas – do trabalho de Raul Mourão: setas, balanços, janelas. Uma espécie de retrospectiva, portanto, mas composta por obras inéditas, apenas 3, na sala principal da galeria. Eis a economia proposta por artista e curador: a materialização em pouco, muito pouco, do que é numeroso, complexo, dilatado. Um arranjo, portanto, oposto à saturação. Em vez de fluxo narrativo, a combinação e a síntese características da poesia. As ideias são fixas (e têm “serventia”, como escreveu João Cabral de Melo Neto), mas se desdobram em constante pesquisa e, ao longo de seus percursos singulares, chegam, num certo momento, a formulações materiais que exigem a saída do ateliê: formas, volumes, potências reclamam o contato com o público, demandam novos sentidos, diálogos. Aqui estão, portanto, investigações em seus estágios atuais, mas que repercutem a memória de uma obra fascinante.

Em 1989, Raul Mourão começou a fotografar setas de sinalização de obras em ruas de várias cidades. Em 2001, passou a pintar setas, e assim, descontextualizadas e livres de função, passaram a um estado de geometria bruta. Em 2016, no entanto, o artista fez as setas “retornarem” à rua, quando um longo muro defronte a seu ateliê, na Lapa, serviu de suporte para uma pintura sequencial; a forma permanecia livre do utilitarismo de origem, mas saíra do isolamento geométrico para se repetir como um padrão. No ano seguinte, o que estava na rua “voltou” ao ateliê: o artista fotografou todo o muro que pintara, num total de 18 imagens que reconstituem toda a obra, marcada então pelo tempo e por intervenções aleatórias. É uma dessas fotografias que está em exposição agora.

As esculturas cinéticas – ou balanços – tornaram-se protagonistas no conjunto da obra de Raul Mourão. Uma delas, em aço corten, impõe-se na sala principal da galeria como a peça mais eloquente da experiência que propomos aqui: um estranho jogo de proporções, no qual as 3 obras – seta balanço janela – parecem desproporcionais em relação ao espaço. Desconsiderando as demandas de um retrato fiel do ambiente urbano, buscamos antes criar certa sensação: a de que a cidade entrou pela galeria sem fazer a concessão de se miniaturizar. Mas se o trio – seta balanço janela – dá a impressão de estar em desarmonia com a sala, decerto o olhar experimenta a ausência de conflitos entre os elementos do conjunto. Diante desses poucos fragmentos, reconhecemos uma paisagem não literal, mas interpretada, que também nos vê, e que nos acolhe em sua estranheza.

Mas o grande balanço se “desdobra” em outros 3, expostos do lado de fora da galeria e nos espaços que gravitam em torno da sala principal. Na parede lateral da fachada, o jogo proposto parece ser o avesso do que se passa dentro, onde as obras parecem demasiado grandes para o ambiente; do lado de fora, onde haveria lugar para uma grande escultura, apenas uma obra de pequeníssima dimensão deixa livre o deck de entrada, integrando a rua, a calçada e o acesso galeria. Trata-se de uma operação sem dúvida urbanística, singela, mas plena de sugestões, em total coerência com a obra de Raul Mourão, sempre atento à cidade e à sua ocupação espacial e simbólica.

A escultura que se vê ali, notável em sua simplicidade, é um empilhamento de tijolos encimado por um balanço em aço, resultado das novas pesquisas do artista quanto a materiais, objetos e possibilidades cinéticas. O diálogo mais imediato da obra se dá com outra do interior da galeria que apresenta uma garrafa quase em estado de flutuação, um desenvolvimento da série apresentada na exposição In my opinion, na Plutschow Gallery, em Zurique (2017). Antes, garrafa e estrutura de aço constituíam os dois elementos formais da obra, que então repousava sobre alguma base. Agora, no entanto, tudo se tornou estrutura, objeto único, desenhado – Raul é um desenhista escultor tanto quanto um escultor desenhista – contra o plano vertical da parede.

O terceiro balanço incorpora uma pedra. Mas a mineralidade aqui não se confunde com recusa ou agressividade. Antes, presa a uma estrutura pendular, a pedra nos faz um convite, oferece-se ao nosso gesto. Tempo e natureza ao alcance de nossa mão. O que poderia ser mais generoso?

A elegância dessas obras, mínimas e expressivas em seu uso restrito de recursos materiais, faz lembrar a economia de um haicai; a geometria austera e serena remete a Volpi; a humildade formalmente rigorosa reporta-nos à poesia de Manuel Bandeira. Para quem se acostumou às esculturas de grande tamanho de Raul Mourão, muitas vezes expostas em espaços públicos, e espera que suas obras sejam mais uma resposta contundente à violência da experiência urbana contemporânea, é uma surpresa ver que a resposta permance, mas agora em direção contrária. 

As janelas surgiram na obra de Raul Mourão a partir de 2014. Muito embora ele partisse de procedimentos similares aos da monotipia, a imagem obtida não resultava do processo mais comum de pintar algo numa superfície para depois comprimi-la com o papel. A técnica estava mais próxima do carimbo, mas não abdicava inteiramente dos procedimentos tradicionais da pintura, entre a abstração total e a sugestão figurativa. A pesquisa tomou vários rumos, expostos em diferentes momentos. Agora, a pintura assume sua força física, e a tela, em dimensões ainda não experimentadas pelo artista, exibe sua potência material como suporte eficiente, mas também como objeto pleno de história.

seta balanço janela  – fotografia, escultura e pintura. Longos percursos, sim, mas aqui, como já foi dito, em vez de fluxo narrativo, a combinação e a síntese características da poesia.

Eucanaã Ferraz

Poeta, professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e consultor de literatura do Instituto Moreira Salles, São Paulo, onde elabora publicações, exposições, debates, cursos e espetáculos.

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