INTRODUÇÃO À TEORIA
DOS OPOSTOS ABSOLUTOS

Como resultado de sua pesquisa de quase uma década sobre grades e sistemas de segurança, entre outras iconografias próprias do contexto urbano, o artista desenvolve esculturas e instalações cinéticas de caráter interativo, que podem ser acionadas pelo público. Nesse núcleo de produção ele estabelece uma associação entre a problemática da violência e uma preocupação formalista com o equilíbrio estrutural. Essas notórias esculturas geométricas quase em estado de flutuação poderão ser vistas em peças de pequena e grande escala, reúne diversas formas suspensas que se movem de diferentes maneiras.

Introdução à Teoria dos Opostos Absolutos

por Guilherme Wisnik

Será o ser humano um homo faber ou um homo ludens? Isto é: estaria a humanidade definida pela sua capacidade racional de construir instrumentos para transformar a natureza, ou, ao contrário, pela sua aptidão para a imaginação fantasiosa, que nos permite a brincadeira, o jogo, a gratuidade e a arte?1 Sem pretender desenvolver aqui o argumento do ponto de vista filosófico, gostaria de observar que o trabalho do artista Raul Mourão transita muito eloquentemente entre esses dois polos. 

Passando do desenho para a escultura, Raul realiza inicialmente trabalhos vinculados à uma matriz construtiva, que dialogam tanto com o ambiente brasileiro quanto com o minimalismo e o pós-minimalismo norte-americanos. Porém, em dado momento do seu percurso, o artista envenena essa construtividade mais fria, digamos assim, com uma certa gratuidade graciosa, que faz as suas estruturas pendularem de forma instável, ao sabor do toque, ou mesmo do vento. Há algo de Calder aí, que soube dar uma síntese àquilo que parecia impossível: os exemplos de Mondrian e de Miró. Expoente de uma geração que já sabe muito bem que o empenho bem-intencionado de uma “vontade construtiva” em arte não será capaz de remediar nossas mazelas sociais, Mourão não se aferra a um único princípio ou corrente, transitando dinamicamente, de forma experimental, entre polos opostos. Daí que, em um passo seguinte, já agora em Bang Bang (2017), ele tenha procurado evitar a possível pacificação lúdica dos seus trabalhos, contrariando o sentido de deleite que esses balanços podem trazer com surpreendentes tiros que acertam e destroem as bases sobre as quais eles se assentam. Santos com pés de barro? Não exatamente. Talvez, melhor: bases preciosas, mas que se mostram frágeis demais diante da violência crescente do mundo à nossa volta.

Na verdade, a construtividade dos trabalhos de Raul não deixa de ter origem nessa mesma violência urbana e social, uma vez que seus modelos são extraídos das agressivas grades encontradas em nossas cidades, isolando parques e praças, blindando entradas de prédios, adornando guaritas etc. Como uma espécie de Sol LeWitt terceiro-mundista, Mourão combina a idealidade geométrica aos obstáculos urbanos que vivencia, injetando nela uma claustrofobia própria ao mundo real, à experiência violenta das cidades brasileiras nas décadas recentes – e em particular do Rio de Janeiro –, onde o encarceramento da vida cotidiana por trás de barras e grids é, cada vez mais, uma constante.

Com o olho atento ao mundo à sua volta, o artista também recolhe outros estímulos da paisagem urbana, tais como códigos gráficos de sinalização. Fazendo pinturas a partir de setas que vê na cidade, Raul as devolve à própria cidade em forma de colagem, como um padrão fortemente gráfico, de linhas vermelhas e brancas em ziguezague, sobre um muro azul em frente ao seu ateliê. Como se trata de uma impressão sobre papel, semelhante a um lambe-lambe, a obra sofre o desgaste do tempo, tanto com rasgos quanto com a adição aleatória de outras colagens por cima dela. É isso que vem a ser fotografado pelo artista, e devolvido ao mundo da arte, isto é, da galeria e do museu (Setaderua Joaquim Selva, 2017).

Ocorre que esse mesmo olhar de flâneur é o que, num outro momento, em Nova York, o faz atentar para uma bandeira norte-americana tremulando sobre um mastro, no alto de um muro, próximo ao píer onde acontecia o Armory Show, e registrá-la em forma de vídeo. O interesse, no caso, está no fato de que, dada a intensidade do vento, a bandeira acabou enrolando-se parcialmente sobre si mesma, escondendo o retângulo azul com estrelas, e mostrando apenas as genéricas faixas horizontais vermelhas e brancas. O que, a um primeiro olhar, poderia nos levar a confundi-la com as bandeiras de outros países quaisquer, como a Malásia ou da Libéria, por exemplo, ou até com um trabalho perdido do artista Daniel Buren. Isto é, o grande signo do altivo nacionalismo norte-americano havia, por um momento, perdido a sua identidade. É isso que Mourão apresenta, em forma de vídeo, com o título The New American Flag (2017).

É curioso pensar esses dois trabalhos em conjunto. Graficamente há uma forte relação entre as suas setas de rua no Rio de Janeiro, com listras vermelhas e brancas, e essa “nova” bandeira americana encontrada como um objet trouvé em Nova York. Pois, como estamos mesmo próximos aos imaginários dadaísta e surrealista, nesse caso, podemos pensar essa coincidência como um “acaso objetivo”. Isto é, como o desvelamento ocasional de conexões profundas. O que não deixa de lembrar, também, as já clássicas reinvenções da bandeira americana por Jasper Johns, pintando-a sobre recortes de jornal, com um resultado que se assemelha às interferências sofridas pelo mural de setas de Raul na Rua Joaquim Silva. 

Essa sugestiva revisão da bandeira americana, no contexto de um violento retrocesso conservador naquele país, assim como no Brasil, talvez tenha servido de disparador poético para um outro trabalho de intervenção sobre bandeira – no caso a brasileira –, apresentado de duas diferentes formas: The New Brazilian Flag (2018) e The New Brazilian Flag #1 (2019). De maneira semelhante, porém aqui como um gesto deliberado, o artista remove o círculo central da nossa bandeira, deixando-a vazada, como um olho cego. Pois, assim como no caso norte-americano, o céu azul com estrelas representa as unidades federativas nacionais, identificando, na bandeira, a própria unidade da República. Significativamente, é isso que desaparece, tanto lá quanto cá, quando esse sinistro alinhamento de forças à direita, que elegeu Trump e Bolsonaro, com todo o seu ranço de moralismo ressentido, sob um invólucro de fake news e pós-verdades, toma o centro do poder formal dos dois maiores países do continente americano, outrora chamado de “Novo Mundo”. Daí a necessidade que o artista teve de instalar essa bandeira em um espaço urbano de grande circulação, violentando um patrimônio público – os Arcos da Lapa – com furos para se fixar o mastro.

Vivemos um momento de grande divisão ideológica, política e social. Um mundo intolerante, que parece caminhar para fraturas irremediáveis. Esse mundo, no entanto, não é mais o mundo dualizado da Guerra Fria, que dominou o nosso “breve século XX”2, e sim um mundo de antagonismos borrados, onde a ameaça não está mais confinada do outro lado do muro, vindo a eclodir de forma fractal e inesperada em ações terroristas ao nosso lado, e a qualquer momento. Um mundo no qual o aspecto farsesco e tragicômico da política faz com quem nossos sentimentos e reações sejam ambíguos, instilando em nós a necessidade de reação através de ações que atuem por fora do esquema binário do bem contra o mal. Daí o título irônico dessa exposição, que se assemelha a um falso manual de ciências. Raul trabalha com oposições. Mas sabe que elas não podem ser inconciliáveis.

1 Para uma defesa do primeiro caso, ver: Richard Sennett, O artífice. Rio de Janeiro: Record, 2009. Para uma defesa do segundo, ver: Johan Huizinga, Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2008.

2 Ver Eric Hobsbawm. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Guilherme Wisnik

Professor Associado e Vice-Diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Foi colunista do jornal Folha de S.Paulo (2006-07 e 2016) e é membro da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

Rolar para cima