METROPIX

Em 2015, Raul Mourão passou a registrar a paisagem humana de uma metrópole — mais precisamente, as pessoas que se deslocavam debaixo dela, sob o asfalto, dentro dos vagões dos metrôs de Nova York. Surgiu assim a série de fotos documentais Metropix, instantâneos de pessoas em trânsito pela cidade. 

Os personagens não se sabiam fotografados. Mourão realizou os retratos com o celular de forma a não ser percebido, disfarçando a câmera do telefone num processo que chama de “fotografia às cegas”.

“Metropix é uma ode à fotografia, onde a figura humana é protagonista, um parêntese no trabalho de ateliê e uma homenagem a Walker Evans”, diz Mourão, em referência ao consagrado fotógrafo norte-americano que, entre 1938 e 1941, fotografou personagens nos vagões dos metrôs de Nova York, sempre com a câmera escondida.

VER–INVADIR

por Eucanaã Ferraz

Metropiks – To Mr. Walker, série de Raul Mourão, é uma conversa explícita com o trabalho de Walker Evans, célebre fotógrafo norte-americano que entre 1938 e 1941 fotografou passageiros nos vagões do metrô de Nova York.

Como se sabe, o programa de Evans tinha como condição buscar o desconhecimento do ato por parte do fotografado. Para tanto, usava uma câmera de 35 mm metida sob seu casaco, com a lente saindo entre os botões, e cujo obturador era acionado graças a um cabo que, também sob a manga, seguia do aparelho até sua mão. Assim, o fotógrafo penetrava uma intimidade que, sem nenhuma contradição, passava-se em público. Ou, ainda, a privacidade era invadida sem conhecimento anterior ou posterior daqueles que, sem o saber, saíam do anonimato para a condição de modelos. Se o fotojornalismo realizava algo semelhante, há muitas diferenças entre aqueles registros no metrô e as imagens captadas com o intuito de transmitir informações. Talvez a diferença principal seja esta: Evans não buscava informações, não era movido pelo acontecimento, muito menos pelo excepcional; suas fotografias tomam nota de um tempo morto, quando o trânsito de um lugar para outro suspende a ação e dá lugar ao entreato. Em vez de colecionar fatos, a câmera buscava a atmosfera, a inequívoca desproteção, e podemos ver então o inopinado ócio das marionetes, agora com os cordões frouxos. Mas não há resquício de transcendência, sinais de algo ou de alguém que manipularia, do alto, os fios dos destinos humanos. Tudo parece absolutamente humano e terreno. Também não se trata de apanhar o anonimato em multidão ou em grupo, como nas célebres fotografias de rua. Nas imagens do metrô, vêm à tona a solidão e o abandono destacados pelo recorte, de modo que apanhamos o todo pelo singular, desde que sentimos a multidão pulsar no isolamento. Estamos, sem dúvida, diante de “um desfile de rostos nus e sem expressão; um longo corredor de hotel de portas parcialmente abertas; um retrato coletivo do vasto mar da humanidade que é a cidade de Nova York”.1

Em 1960, outro norte-americano, Enrico Natali, realizou série semelhante à de Evans. Cabe observar, no entanto, que esta última foi exposta pela primeira vez em 1966, no Museu de Arte Moderna de Nova York, quando também foi reunida em livro sob o título Many Are Called. Curiosamente, a série de Natali parece seguir os mesmos princípios e alcançar resultados muito semelhantes.2 Diante disso, a pergunta que surge imediatamente é: Natali teria conhecido aquelas imagens antes de sua exibição pública? Indaguei do próprio fotógrafo, que me respondeu generosa e prontamente, afirmando que não vira as fotos do metrô de Walker na época em que também estava fotografando passageiros nos vagões e plataformas, acrescentando: “mas eu estava familiarizado com o livro dele, American Photographs, e fui fortemente influenciado por ele.3 Os trabalhos de Evans e Robert Frank foram as duas principais influências para o meu próprio trabalho”. Ainda perguntei a Natali acerca de algo que também aproxima sua série da de Evans: os passageiros desconheciam que estavam sendo fotografados? Eis a resposta: 

Para as fotografias do metrô eu usei uma câmera reflex de lente dupla Ikoflex que era semelhante a um Rolleiflex. Eu a tinha modificado para que o obturador pudesse ser liberado com o capô fechado. Eu usava por cima do ombro ao meu lado e podia operar a câmera com uma mão, incluindo o avanço do filme. A maior parte das pessoas não sabia que eu estava fotografando. Também naquela época não era de conhecimento geral que você poderia tirar fotografias sob aquelas condições de luz, sem flash. No entanto, a Kodak havia recentemente lançado um filme de alta velocidade, Royal X, com ASA de 1600, o que tornou aquele tipo de fotografia viável.4

Tanto nas fotografias de Natali quanto nas de Evans, o metrô surge como estúdio privilegiado, quase um laboratório de apresentação da vida urbana, no qual emerge a melancolia, o cansaço, alguma  alegria também, e sempre a nudez dos rostos e dos gestos apanhados sem nenhuma defesa. Os dois fotógrafos, com um intervalo de duas décadas, viram o mesmo: a América sem suas máscaras de excitação, triunfo e juventude. Portanto, a guerra que marcou o lapso de tempo entre as duas séries deixou intacto o desejo de a fotografia mostrar o americano como anti-herói, sendo o próprio fotógrafo um personagem rebaixado, implicado tão somente com a vida comum, sem nenhum desejo senão o de registrar aquilo que qualquer um poderia ver. Afinal, bastava entrar num daqueles vagões e lá estariam homens e mulheres, velhos e crianças, figurinos, cenas, tudo aquilo que Walker e Natali imobilizaram a partir de olhares que buscavam exibir sua própria dimensão ordinária, ainda que para isso ambos precisassem agir de modo imprevisto, trabalhar incógnitos e mesmo fora da lei, já que naquelas décadas era proibido fotografar no metrô.5

Seis anos depois de Natali, a cidade subterrânea, principalmente o Brooklyn, reapareceria numa série de outro fotógrafo norte-americano, Danny Lyon.6 Agora, no entanto, os cromos tirados com a Rolleiflex mostram imagens coloridas, nas quais tudo ganha uma pátina acastanhada, próxima do bronze, ou a brancura azulada do aço e do azulejo, que curiosamente parece aquecida por algum outro elemento, como se houvesse sempre alguma ferrugem apontando para o tempo, para a vida dos materiais. Porém, a diferença principal em relação a Evans e Natali é que Lyon não escondeu sua câmera. Talvez por isso resulte uma atmosfera menos distante e fria, que a cor ajuda a situar numa escala melancólica, mas suave. Também chama atenção o interesse de Lyon pelas estações, nas quais paredes, tetos, luzes e mesmo os trens são valorizados como planos, superfícies, cor, textura, como se as qualidades plástico-gráficas do cenário guiassem o olhar do fotógrafo tanto quanto seu interesse pela figura humana. 

Pode-se ver uma espécie de exacerbação do trabalho de Lyon na série de Bruce Davidson, já nos anos de 1980. Aqui, a ferrugem corroeu todas as superfícies, inteiramente grafitadas. As fotos de Davidson como que guardam o som, a algaravia, e da luz estroboscópica refletida na superfície metálica dos vagões resulta um mundo violento, ameaçador, misterioso, decadente, arrebatador, no qual a escuridão contrasta com vermelhos e amarelos ultravibrantes. A pele – principalmente a dos negros – substitui as vestimentas sóbrias que se destacam nas imagens produzidas por Walker Evans e Enrico Natali. A sensualidade, já presente na série de Lyon, deixa de ser uma vaga insinuação e irrompe com força explosiva. A presença maciça das pichações faz com que o olho não descanse, ziguezagueando exaltado entre mensagens sem sentido, exasperadas como gritos que não chegam à superfície da cidade. O tempo suspenso da viagem – que chamei de tempo morto – ganha dramaticidade agora, como se não houvesse mais nenhuma chance para a morosidade e o repouso, sequer na travessia. É bastante eloquente, sob tal aspecto, que em vez da fotografação dissimulada, tenhamos pose e frontalidade: fotógrafo e fotografados estão em ação. Tudo é enredo, evidência de energia e movimento. 

Muito embora a MTA (Metropolitan Transportation Authority) tenha começado a reprimir violentamente a gritaria dos grafites ainda em meados dos anos 1980,7 outro fotógrafo, John Conn, ainda captaria aquele mundo excessivo, turbulento e, em largo sentido, subterrâneo. Conn, diferentemente de Davidson, no entanto, construiu sua série em preto e branco, opção que substituiu a miríade colorida e tortuosa pela luz cortante do aço, que parece se espalhar sobretudo, gerando um incômodo em tudo diferente da violência erotizada das fotografias de Davidson. Uma das fotografias de Conn flagra, de dentro do vagão, o braço de um homem que, dependurado na janela, empunha uma faca. A imagem parece sintetizar a atmosfera de sua série, na qual seres e coisas parecem cobertos pela lâmina metálica da luz. 

Não é por acaso que, em diferentes momentos, com investimentos, propósitos e resultados diversos, fotógrafos, americanos ou não, tenham se voltado para o mesmo. Por lá passaram as lentes de Helen Levitt, Cartier-Bresson, Bill Cunningham, Nan Goldin, Ferdinando Scianna, Martha Cooper, Mark Cohen, Geoffrey Hiller, entre outros. É curioso observar, portanto, que Raul Mourão, com Metropiks, insere-se nessa genealogia. 

Sem pretender buscar um fio comum, julgo que a todos esses fotógrafos interessou descer àquele mundo subterrâneo como se lá os personagens fossem mais reais que os da superfície. Estava (está) ali algo que poderíamos chamar de realidade fotográfica. Voltando a Walker Evans e Enrico Natali, julgo que para eles o metrô funcionou como estúdio, ambiente concentrado, exposição clara dos personagens em exposição contra o fundo, com uma luz mais ou menos estável. Ou seja, tudo parecia pronto para ser fotografado. Assim, recortada, a vida ali terá lhes afigurado mais real do que a que perdurava lá fora, no alto. Se vagões e plataformas se constituíram como um estúdio bem mais conturbado para Bruce Davidson e John Conn, todos procuraram na profundeza – literalmente – uma verdade que se dava a ver de imediato. Assim, a fotografia via-se frente a frente com seu objeto ideal, podendo diante dele exercitar toda a força de seu realismo na captação direta. 

Confirmando sua posição fora do campo profissional da fotografia, Raul Mourão optou por uma investida técnica também não profissional: capturar imagens com seu smartphone, mais especificamente, um iPhone. Como Evans – citado no título de sua série – e Natali, o brasileiro também se decidiu por um processo no qual os passageiros desconhecem o que está em marcha. 

Para isso, o telefone estava sempre no modo câmera e com a luz do visor no modo mais fraco, o que garantia que quem estivesse próximo não percebesse o que se passava. Com o celular na mão, Raul se  aproximava da pessoa que lhe interessava e a fotografava apertando o botão do volume, que então funcionava como disparador da câmera. Quando o passageiro escolhido viajava de pé, Raul se colocava ao seu lado com o celular junto à orelha, como se falasse ao telefone; quando o protagonista estava sentado, Mourão seguia ereto, mas agora segurava a câmera com o braço distendido. O processo parece engenhoso, mas é bastante simples. 

Mourão trabalhou, como Evans e Natali, com uma cisão entre a escolha feita pelo olhar e o clique. Ou seja, nesse processo, elege-se e imagina-se o quadro, mas o olho em nenhum momento vê através da lente. Se, por um lado, deparamos aqui com um realismo total, também é preciso considerar, por outro lado, que aquele descolamento entre o olho e a câmera obriga o fotógrafo a formar uma imagem mental de algo que, contraditoriamente, está presente. Ou ainda, diante de seu objeto, aquele que fotografa apenas faz uma ideia do que será registrado pela câmera, sendo obrigado a imaginar, sem grande segurança, o resultado final. Se o enquadramento não controlado avizinha o trabalho de Mourão dos de Evans e Natali, um aspecto decisivo os diferencia: a intensidade da aproximação com o modelo. Enquanto os dois americanos mantiveram uma razoável distância espacial, Raul exibe uma empenhada proximidade física.

Se essa espécie de visibilidade palpável remete às imagens feitas por Bruce Davidson, não há dúvida de que são duas aproximações distintas: os passageiros sabiam que estavam sendo fotografados por Davidson, o que (além da coloração saturada) empresta às suas imagens aquela atmosfera sensual; tal vínculo entre fotógrafo e modelo instala uma teatralidade hiperbólica. Mourão, ao optar por uma intimidade conhecida por apenas uma das partes, investe em outro efeito teatral, que põe em cena uma inequívoca usurpação da privacidade. 

E aqui parece possível, ou mais que isso, desejável reconhecer o quanto tal disposição se mostra de acordo com outros trabalhos do artista. Penso em suas esculturas, que tantas vezes se apropriam – direta ou indiretamente – das grades que protegem as edificações nas cidades – porque em Metropiks vejo o criador avançar por sobre os códigos, ou ainda atravessar as grades simbólicas que protegem a intimidade.

Foi o próprio Mourão que, certa vez, observou quanto à obsessão pelo gradeamento no espaço urbano: “A população não enxerga as grades que cercam as construções, apreende apenas a função defensiva”.8 O acúmulo de barras metálicas protegendo casas, prédios, lojas, praças e monumentos torna-se invisível pela sua naturalização, mas basta um elemento isolado de sua função para que o medo, a insegurança e o desprezo pela urbanidade se exponham à vista.

É inquestionável que a “função defensiva” se converteu em uma justificativa acima de quaisquer juízos, mas Mourão não se cansa de recolocar em nova posição as peças e as regras do jogo, trazendo à tona sinais da paranoia coletiva urbana em trabalhos que exibem uma estranha aliança entre estética e comentário político, ready-made e crítica social, carnavalização e disciplina. Ao se lançar num programa de captura em que os passageiros não sabem que estão sendo fotografados, Mourão parece trazer em seu olhar a memória das grades, sugerindo que as levamos conosco quando nos mantemos fechados ao olhar alheio, ligados à tela dos smartphones, a salvo do que nos convidasse para o convívio, perfeitamente alienados de nosso entorno. E é aí que Raul investe contra a fragilidade e a falácia da “função defensiva”. 

Considero Metropiks mais que homenagem a Many Are Called. Para ser mais justo: Raul opera uma apropriação da série de Walker Evans, e então dá lugar tanto à admiração quanto à paródia. Tornando flagrante o quanto o processo inventado pelo americano está ao alcance de qualquer um, o quanto pode ser refeito, adaptado, recriado, vulgarizado, Metropiks substitui o fotógrafo profissional por qualquer um. Nessa operação de rebaixamento, Raul invade a história da arte e da representação desde o século XX, desrespeitando os valores da propriedade privada e da posse e, consequentemente, desmobilizando o valor do domínio técnico – noutros termos, a especialização –, bem como as ideias de estilo e coerência.

Curiosamente, é de coerência – noutros termos, porém – que falo quando observo o quanto Metropiks parece manter um nexo interno com o vasto e fragmentário conjunto da obra de Raul Mourão. 

Já tive a oportunidade de observar que a abstração de seus trabalhos “sempre se baseou em dinâmicas indistintas e problemáticas”. E ainda:

(…) sua geometria tem origem nos objetos cotidianos, como fachadas de edifícios, campos de futebol, grades e sinalizações de obras públicas. Se, ao longo de sua carreira, o artista passou a aspirar organizações formais cada vez mais livres, nunca deixou de exibir, simultaneamente, a memória de processos de pesquisa arraigados à vivência urbana e cotidiana.9

Metropiks dialoga, portanto, com todo o conjunto dessa obra, mesmo com a geometria das esculturas, nas quais a porosidade pode ser pensada não como uma qualidade dos materiais, mas das formas, que se querem transpassadas por reminiscências psicossociais. No entanto, todo o esforço permanece sendo o de construir figuras equilibradas e surpreendentes no espaço. Em vez de conteúdos narrativos, deparamos com jogos de valor plástico-poético nos quais a impureza cotidiana é um ativador da linguagem, não um fim em si mesmo.

Aventuro-me a observar que o impulso mais íntimo de Raul Mourão seja uma procura de harmonia e, consequentemente, uma busca das qualidades formais relativas a um estado de equilíbrio e concórdia tão desejado quanto impossível na precariedade do tempo e do espaço vividos. Não por acaso, toda a autêntica e intensa inclinação para a crítica social acaba por se revelar como exame e condenação da desarmonia, do desequilíbrio e do vazio que vigoram no cotidiano das cidades. Ameaça, repulsa, tédio, injustiça, automação do humano e relações de poder surgem sempre na tensão entre planejamento e acaso, crônica cotidiana e abstração universalizante, intuição e controle. Metropiks segue essa mesma direção.

Penso que vale a pena comparar brevemente a série de Raul Mourão com a de Andre D. Wagner, Here for the Ride, sobretudo pela proximidade temporal, já que ambas foram realizadas no primeiro quartel desta década. A editora responsável pela publicação das fotos em livro em 2017 – a Creative Future, de Copenhague – destaca uma exploração do “lado poético da vida cotidiana”. Talvez o termo “poético” venha carregado aqui de um equívoco, já que podemos supor que se lhe atribuem certas qualidades: aquilo que é agradável, cortês, ameno etc. As fotografias de Wagner mostram a  diversidade racial, étnica e sociocultural no metrô de Nova York, sobretudo a presença dos negros ocupando espaços – abrindo espaços – nos vagões, num convívio que, pelo menos ali, guarda alguma serenidade, sobretudo quando são crianças e adolescentes que estão em quadro. As imagens também dão a ver o cansaço, a melancolia, a confusão, mas muitas exibem uma ternura e uma alegria inteiramente estranhas às imagens conquistadas por Raul Mourão. Nestas, vigora uma indisfarçável aspereza, mesmo na luz, não raro incômoda, que vem estourada no reflexo dos vidros. Mesmo certas sequências parecem perseguições, como se o fotógrafo estivesse no encalço de determinados passageiros, como um paparazzo. O que poderíamos chamar de “poético” nessas imagens tem a ver com uma consciência de linguagem. 

Em 1999, Raul Mourão planejou uma obra pública a que deu o nome de Carro/Árvore/Rua. A proposta consistia em plantar uma árvore na carroceria de um caminhão e depois transportá-la pelas ruas da  cidade. Ao tratar da obra, Paulo Herkenhoff cunhou o termo “(i)mobilidade ativa”. Tomo-o de empréstimo na medida em que dá conta da ambiguidade que reaparece em Metropiks: afinal, não está absolutamente claro o quanto há de mobilidade e de imobilidade no deslocamento metroviário. Do mesmo modo, aquela condição “ativa” indica que para Raul mesmo o que parece imóvel exerce uma função no espaço urbano, o que se faz óbvio e eloquente quando o objeto sai de sua condição habitual. Naquele projeto, em Metropiks e em outras obras, somos levados a refletir sobre a mobilidade como característica daquilo que é capaz de se movimentar por sua própria conta ou que tem a possibilidade de ser movido, mas também sobre toda e qualquer capacidade de mudar, de apresentar variações. Mourão propõe ao espectador um pensamento sobre a inconstância, sobre os estados de espírito, sobre a instabilidade dos fatos, sobre a (i)mobilidade social, sobre os deslocamentos da arte para dentro e para fora dos espaços fechados, sobre objetos e signos esvaziados e/ou despidos de valor mas requalificados quando são demovidos de seus lugares rotineiros.

Talvez a rotina seja o “inimigo público número 1” de Raul Mourão. Suponho ainda que o metrô de Nova York – cidade onde, cabe observar, mantém um ateliê desde 2013 – acabou por lhe interessar porque ali a materialidade de uma realidade móvel, mutável, variável, confina com a repetição. Se, por um lado, os personagens são sempre diversos, por outro lado a estreiteza do cenário/estúdio sugere a homogeneidade característica do avassalador anonimato nas metrópoles. Ao fotógrafo – invasor, trapaceiro – concerne mostrar tanto a diferença quanto a semelhança. Coincidência, reiteração, reprodução: sinais decisivos de nossas vidas, que se repetem inexoravelmente em algum vagão/mundo, numa duração que só a instantaneidade da fotografia pode apreender.

1 Luc Sante, citado em EVANS, Walker. Many Are Called. New Haven: Yale University Press, 2004, p. 14.

2 As imagens foram apresentadas no livro New York Subway, 1960, publicado em 2012, acompanhando uma exposição no Santa Barbara Art Museum, na Califórnia.

3 Esse diálogo surgiu numa troca de e-mails no dia 6 de maio de 2018.

4 Ibid.

5 Essa proibição durou até o começo dos anos 90.

6 A série se chamava Underground: 1966 e teve seu lançamento inédito em 2014. Organizado pelo MTA Arts & Design, a exposição durou um ano na estação Atlantic Avenue-Barclays Center, no Brooklyn.

7 Davidson já havia fotografado o metrô no final da década de 50.

8 Texto publicado na exposição Cego Só Bengala, no Centro Cultural Maria Antonia, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2003, reproduzido em Raul Mourão. Coleção ArteBra. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/Automatica/Tecnopop, 2007, p. 85.

9 “Ver o visível,” texto publicado pela galeria LURIXS, Rio de Janeiro, na ocasião da exposição Chão-Parede-Gente, de Raul Mourão, em 2010.

Eucanaã Ferraz

Poeta, professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e consultor de literatura do Instituto Moreira Salles, São Paulo, onde elabora publicações, exposições, debates, cursos e espetáculos.

Rolar para cima