VOLUME VIVO

A exposição Volume Vivo é dedicada à memória de Cristina Alban, amiga e incentivadora de Mourão e figura chave no cenário das artes visuais da cidade de Salvador.

Na terça-feira, 22 de outubro de 2024, às 15 horas, o artista carioca Raul Mourão recebeu em seu atelier na Lapa o curador mexicano Pablo León de la Barra, que vive no Rio para uma conversa sobre  a exposição “Volume Vivo”. Sentados entre duas grandes mesas que sustentam diversos trabalhos em andamento e rodeados por algumas das obras da exposição, Mourão e de la Barra discutiram não apenas os detalhes de “Volume Vivo”, mas também a prática artística de Mourão e o afeto que ambos nutrem pela cidade de Salvador. A seguir, alguns trechos selecionados dessa conversa. 

Pablo León de la Barra
“Assim como as grades permitem ver o que está do outro lado, quem está dentro consegue ver um pouco do mundo de fora, e isso se torna uma espécie de instrumento de mediação. Não é aquela ideia da pintura como janela — a pintura clássica que é uma janela para outro mundo — mas sim a grade como um instrumento de mediação.”

“Você está repensando essa relação entre o que é o desenho, o que é a pintura, e também pode fazer o mesmo com a escultura. No outro dia, quando visitei seu estúdio, você comentou que são pinturas feitas por escultores. Agora procuro a citação exata do que você disse, mas a essência foi que, “na pintura, minha ferramenta não é o pincel, é como se na extensão de minha mão existisse um alicate.”

Raul Mourão
“Minha relação com essa exposição inaugura uma espécie de diálogo com a cidade, uma homenagem a ela. Ela surge a partir de uma certa energia que atravessa minha relação com Salvador. No entanto, tenho um respeito profundo pela cidade e me sinto como se estivesse sempre iniciando uma relação.”

“As fotos das grades retornam, mas não mais como um comentário sobre segurança pública. Agora, são um comentário sobre o grafismo da cidade, sobre um desenho que se acopla à arquitetura de forma mais poética, e não brutalista.”

Pablo León de la Barra
“Raul, o artista, como criador de estruturas que não são apenas estruturas físicas ou objetos de arte, mas também estruturas de trabalho, estruturas de ação e estruturas de exposição.”

“De alguma maneira, você funciona como um artista-curador explicitamente. Não sei se como curador, mas você é um pouco um agitador de tudo isso, permitindo que todas essas vozes criem polifonias, onde podem coexistir.”

Raul Mourão
“Essa relação com o ferro e a tradição do aço é algo que compartilho. A minha grade que está lá é uma grande pintura colorida, não é mais um objeto físico, como a grade que observamos lá embaixo.”

“A exposição reúne a pesquisa das grades de proteção dos casarões antigos e dos bairros históricos, em diálogo com minha série de fotografias de grades. Em Salvador, porém, encontro um outro tipo de desenho ornamental e decorativo, uma serralheria mais leve, com materiais mais simples e que exibe desenhos exagerados, um pouco além do necessário para a segurança.”

Pablo León de la Barra
“O que acho interessante é como existe essa relação com a história do material do ferro. Além disso, muitas vezes o que parece ser ornamentação nas janelas servia para transmitir outras histórias. Por isso, acho que seria uma linha interessante de trabalho que ainda dá para continuar explorando.”

Raul Mourão
“As esculturas cinéticas que estarão na exposição têm um certo desenho que, para mim, internamente, remete a um balanço da cidade, a uma musicalidade que percebo quando estou lá, de férias, nas festas ou nos ensaios dos blocos e apresentações musicais.”

Para acessar a entrevista na íntegra, clique aqui.

VOLUME VIVO

Uma conversa entre Pablo León de la Barra e Raul Mourão

Na terça-feira, 22 de outubro de 2024, às 15 horas, o artista carioca Raul Mourão recebeu em seu atelier na Lapa o curador mexicano Pablo León de la Barra, que vive no Rio para uma conversa sobre  a exposição Volume Vivo. Sentados entre duas grandes mesas com diversos trabalhos em andamento e rodeados por algumas das obras da exposição, Mourão e de la Barra discutiram não apenas os aspectos de Volume Vivo, mas também a prática artística de Mourão e o afeto que ambos nutrem pela cidade de Salvador. A seguir, a transcrição dessa conversa. 

Pablo
Estamos aqui reunidos para falar sobre a exposição Volume Vivo que você realizará em Salvador, na galeria do nosso querido amigo Roberto Alban. A exposição, que será aberta daqui a alguns meses, já está quase pronta, não? O trabalho está caminhando. Gostaria também de dedicar esta conversa à memória da nossa querida Cristina Alban, que era uma grande amiga sua e minha e companheira da galeria, e que nos deixou há um ano.

Curiosamente, na minha primeira visita a Salvador, em 2016 ou 2017, fui convidado pelo Roberto e pela Cristina para conhecer mais a fundo a cena artística local. Eu já havia estado em Salvador outras vezes, mas de forma mais turística, pesquisando sobre Lina Bo Bardi e outros pontos. Mas foi nessa ocasião, com o convite de ambos, que passei uma semana visitando artistas e conhecendo a cena artística da cidade. Foi ali que comecei a construir uma relação mais próxima com Salvador.

Desde então, pelo menos uma vez por ano eu vou para lá para realizar pesquisas, visitar amigos e fortalecer essa conexão. Desenvolvi uma amizade muito importante com o Ayrson Heráclito, além de outros artistas, curadores e galeristas. De certa forma, Salvador se tornou uma referência fundamental tanto para o meu processo de pensamento quanto para minha compreensão do Brasil. Entendo agora o Brasil como um país muito mais complexo e cheio de nuances que, como estrangeiro, eu não conseguia perceber de imediato. Essas visitas anuais (às vezes até duas vezes ao ano) me permitiram ampliar meu entendimento do Brasil, e sou muito grato aos amigos de Salvador, que me permitem acessar esse conhecimento e o compartilham comigo.

Queria, então, começar falando um pouco sobre a sua relação com Salvador: como você chegou à cidade, como seu trabalho se transformou a partir dessa conexão. Depois, seguimos falando da exposição, o que ela vai trazer e do seu trabalho de forma mais ampla. Vamos começar, então, com o ponto central, que é Salvador, e avançamos a partir daí.

Raul
É realmente muito oportuno começarmos hoje falando sobre o trabalho e sobre essa exposição em Salvador, na Galeria Alban, que hoje leva esse nome. E agradeço por celebrar e lembrar da Cristina. De fato, temos essa coincidência, não é? Eu também devo a minha experiência com Salvador – de frequentar, de visitar e, hoje, de ter uma relação especial com a cidade – à Cristina e ao Roberto. Foi como você mencionou, em 2006? O mesmo ano que no meu caso.

Pablo
Foi em dois mil e dezesseis (2016).

Raul
No meu caso, então, foi um pouco antes, em 2012. Foi nesse ano que eles invadiram esta sala aqui com o Afonso Costa. Marcaram uma visita e anunciaram que queriam abrir uma galeria de arte contemporânea em Salvador. Já atuavam no mercado de arte há muitos anos, tanto com arte quanto com antiguidades, mas queriam, naquele momento, dar mais destaque e fortalecer sua atuação no mercado de arte contemporânea. Inclusive, já estavam construindo o prédio da galeria, que estava bem adiantado; eles até mostraram o projeto e algumas fotos.

Foi o Afonso Costa, um amigo em comum, que fez essa ponte. Eles tinham um projeto com artistas que eu já conhecia, como a Beth Jobim, a Gabriela Machado, o Álvaro Seixas, e eu acabei me identificando tanto com eles quanto com os artistas. O Afonso estava assessorando o projeto, e aceitei o convite. Minha exposição acabou sendo a primeira individual da galeria. Eles inauguraram com uma exposição coletiva da qual eu participei, e, em 2013, minha exposição foi a primeira individual.

Pablo
Então essa será a sua terceira exposição?

Raul
Sim, essa será minha terceira exposição individual na Alban. Em 2021, oito anos depois da primeira, realizei a segunda e, agora, em 2024, farei a terceira. E foi justamente em 2013 que comecei a visitar Salvador com mais frequência. Curiosamente, cheguei à cidade no mesmo dia em que o Selarón morreu.

Eu embarquei já sabendo da notícia: ele havia sido encontrado morto no dia em que saiu uma matéria no jornal sobre ameaças de morte que ele estava recebendo. A matéria estava na primeira página; eu era assinante do jornal, li a notícia, peguei um táxi para o aeroporto e, quando desembarquei, ele já estava morto. No embarque, eu ainda tinha lido sobre as ameaças, e assim que cheguei, o Fred Coelho comentou: “Poxa, que merda, o lance do Selarón.” E eu perguntei: “O que aconteceu?” Ele respondeu: “Selarón morreu.” E eu falei: “Como assim? Ele não morreu, a notícia era sobre as ameaças!” E ele disse: “Não, morreu mesmo. Está morto!”

Esse era o clima quando fui me encontrar com Cristina e Roberto Alban. Eu estava chorando, porque o Selarón era meu vizinho, meu amigo. Nós dois éramos os únicos artistas na rua naquela época. Hoje há outros, como o Eduardo Berliner, a Laura Lima, o Cabelo, mas naqueles tempos, éramos só eu e ele. Nós saíamos juntos, tomávamos cerveja, apresentávamos outros artistas um ao outro. Lembro de um dia estar com Daniel Acosta e apresentar o Selarón a ele; outra vez, estava com Marcelo Cidade e André Komatsu, e fiz o mesmo. Ele era alguém do meu convívio, um vizinho, um ícone da cidade e da rua.

Aquele dia foi trágico. Deveria ter sido um dia festivo, em que eu conheceria a galeria pela primeira vez e Roberto e Cristina haviam planejado me mostrar a cidade, com visitas à Igreja do Senhor do Bonfim, à Ponta do Humaitá e outros lugares. Mas acabou sendo um dia muito confuso. Tive que dar entrevistas, escrever, contestar, denunciar a negligência do poder público municipal e estadual. Foi um início conturbado da minha chegada em Salvador. Voltei para casa ainda naquele mesmo dia, nem cheguei a dormir. Mas foi ali que começou minha amizade com a Cristina e o Roberto.

Pablo
Interessante, porque o Selarón também tem uma relação com Salvador. Ele aparece como pintor em vários quadros da cidade, e chegou a passar pela Sorveteria da Ribeira, onde há obras dele até hoje. Inclusive, agora, olhando para você aqui na minha frente com o amarelo e o vermelho ao fundo, penso nas cores do Selarón, não? Não sei se é coincidência.

Raul
Sim, e são essas as cores que estarão na exposição. Aqui estão os desenhos que deram origem às pinturas que vão ser exibidas. Eles têm uma relação com as grades de Salvador, com as grades do Rio, as janelas, as setas e sinalizações. Foi assim que, ao chegar lá, essa amizade começou.

Naquela época, eu conhecia Salvador muito superficialmente. Mas, de lá para cá, construí uma relação parecida com a sua, de visitar regularmente, criar uma rede de amigos e desenvolver um afeto pela cidade, com essa vontade de sempre voltar. Esse vínculo se consolidou mesmo a partir de 2021. Em 2013, quando fiz minha primeira exposição, logo em seguida me mudei para Nova York. Visitei Salvador no início do ano, mudei-me em abril e inaugurei a exposição em setembro. Assim, essa minha primeira exposição na Galeria Alban foi realizada no Brasil, mas eu já morava em Nova York. Vim de lá para Salvador especialmente para a inauguração.

Pablo
Quanto tempo você morou em Nova Iorque?

Raul
Eu morei em Nova Iorque em 2013, 2014 e 2015.

Pablo
No mesmo tempo que eu estava lá, então.

Raul
Voltei ao Brasil em dezembro de 2015. Em 2021, fiz minha segunda exposição, e foi a partir desse momento que minha relação com Salvador se fortaleceu. Desde então, visito a cidade mais de uma vez ao ano, como você mencionou. Salvador é uma cidade inspiradora, carregada de uma história muito mais complexa que qualquer outra cidade brasileira, em todos os sentidos: na desigualdade, na preservação e na complexidade urbanística. É uma cidade grande, com uma economia e população também grandes, e que, nos últimos anos, vem passando por uma transformação na cena cultural e artística.

É uma cidade exuberante, com uma história cultural e artística marcante. Ainda assim, sempre me sinto como um estrangeiro ali. Frequento a cidade, tenho uma rede de amigos, conheço meus lugares preferidos, como o Catiguria no Ceasinha, o Di Janela, a feira de São Joaquim; tem a cerveja aqui e ali, uma praia escondida que conheci, os passeios pelo Bonfim, as saídas para fotografar a arquitetura, as janelas, as grades. Sinto que me conecto com a energia da cidade, e ela me alimenta, mas ainda assim me vejo como um visitante.

Por isso, acredito que esta exposição tenha um diferencial em relação às anteriores. Nas outras, eu levava uma série que estava desenvolvendo e que poderia exibir em qualquer lugar, mas escolhi mostrar em Salvador. Já nesta exposição, há um pouco do meu olhar sobre a cidade. Reúne a pesquisa das grades de proteção dos casarões antigos e dos bairros históricos, em diálogo com minha série de fotografias de grades. Em Salvador, porém, encontro um outro tipo de desenho ornamental e decorativo, uma serralheria mais leve, com materiais mais simples e que exibe desenhos exagerados, um pouco além do necessário para a segurança.

Isso trouxe outras figuras para dentro dessa geometria brutal, com apêndices de arquitetura que servem para a proteção do patrimônio. No Rio, essas proteções vêm junto de guaritas e câmeras de segurança; já em Salvador, elas se integram à qualidade arquitetônica local, sendo feitas por artesãos do ferro. Esse aspecto foi impregnando o trabalho e talvez tenha sido o primeiro momento desse processo.

Essa coleção de fotos, que depois se transformou em uma série de desenhos e, por fim, nas pinturas, começou sem a intenção de ser uma obra em minha pesquisa. As fotos vieram do impulso de registrar, sem planos prévios de exibição.

Esse é o velho impulso que a gente tem. Eu costumo comparar com o músico que toca violão: ele chega em casa e tem vontade de tocar, e, enquanto está tocando e estudando, às vezes sai uma música. É mais ou menos assim. Eu faço essas fotos como uma anotação visual. Quando estou enquadrando, não penso: “Vou ampliar isso em dois por setenta em metacrilato para exibir dessa ou daquela forma”. Não, é mais uma anotação, um desenho, um desejo de criar ou guardar uma imagem – um pedaço da arquitetura, da cidade. Pode ser que um dia aquilo inspire um desenho, uma instalação, algo nesse sentido. Foi o mesmo com os desenhos. Na verdade, eles começaram como um presente de aniversário.

Pablo
Antes de entrarmos nos desenhos, vamos dar uma pausa para separar melhor a questão da foto e da imagem. Minha pergunta vai justamente até esse ponto: o que mudou nesses onze anos, de 2013 a 2024? A cidade influenciou seu trabalho de alguma forma? Acho que você começou a responder agora, ao comparar a primeira exposição, que foi praticamente concebida e pensada aqui, e a segunda exposição. Mas agora, com a terceira, parece que a situação se inverte, ou se desloca mais para o outro lado, não é?

Raul
Acho que sim, Pablo. Por exemplo, eu poderia ter dado mais tempo, já que minha última exposição foi em 2021, e agora estamos em 2024, então serão três anos. Poderia esperar mais, mas quero passar janeiro com os amigos em Salvador, estar lá pelo menos uma parte do mês, e quero expor lá o máximo de vezes possível. Falei para o Alban: “Reserva para mim de dezembro a fevereiro! Quero estar lá, quero estar lá!”

Você também tem essa relação com a cidade, essa vontade de fazer parte, de estar conectado a um lugar que escolhemos e com o qual temos uma relação afetuosa. Eu acredito muito no afeto no campo da arte. Muitas decisões que tomamos aqui são uma questão de gosto, sim. Gosto de trabalhar coletivamente com outros artistas, de frequentar ateliês, de estar mais presente na cena artística da cidade, de conhecer e mostrar o que estou fazendo.

Há o desejo de fazer a obra circular e, principalmente, circular nessa cidade que faz parte da minha vida afetiva desde 2013, mas de forma mais intensa a partir de 2021. Salvador também tem para mim um território emocional. Foi ali que, em 2021, comecei a namorar a  Isabela Capeto, e passamos janeiro juntos, comemorando o aniversário dela em 2022 e 2023. Em 2024, voltei à mesma casa, agora sem ela, mas com meu filho. Salvador, para mim, é também um espaço de memórias e emoções.

Pablo
Teve então uma reconciliação ou…?

Raul
Mesmo que a gente tivesse se separado, eu iria mencionar isso, pois essa série eu fiz para ela. Assim como as fotos, elas são resultado do desejo de produzir algo do campo visual que não está ligado a uma programação do mercado ou a estratégias de carreira. Não trabalho com isso. Sou péssimo nesse aspecto; não sou do lobby nem do networking. Minha gestão é caótica. Aqui tem um prego, aqui tem isso e aquilo, porque vou juntando as coisas.

Eu sei trabalhar gerindo o caos, mas sou caótico por natureza. Essa série surgiu como um presente de aniversário. Eu queria fazer um presente à mão e levei um conjunto para Salvador, colocando na parede no dia do aniversário dela. Quando o coloquei, percebi o quanto isso se conectava a outros desenhos. Não era tão evidente inicialmente. Então, fotografei mais e, ao voltar, dei continuidade a esse cruzamento, fazendo o diálogo se tornar mais visível, porém não ilustrativo. Minha intenção não é reproduzir em desenho os padrões das grades; é, a partir delas, criar outra imagem, uma imagem pictórica, de uma outra escala. Para um espectador mais fluido, essa relação pode não ficar evidente.

As esculturas cinéticas que estarão na exposição têm um certo desenho que, para mim, internamente, remete a um balanço da cidade, a uma musicalidade que percebo quando estou lá, de férias, nas festas ou nos ensaios. O vídeo que estará na exposição traz a imagem documental da cidade, servindo como um caderno de anotações fotográficas – um conjunto de fotos que estamos vendo aqui – e terá uma trilha sonora que sonoriza a exposição.

Quase todas as minhas últimas exposições incluem um vídeo com essa função. Tenho achado meio monótono entrar em uma exposição que não tem barulho, não tem som, uma dinâmica própria, uma elipse dramática.

Pablo
E o som, você comissiona alguém ou..?

Raul
O som eu chamo o Nado Leal, o Ricardo Imperatore, Nepal, colaboradores da vida inteira.

Pablo
Então, vamos por partes. Temos as fotos das janelas da cidade e das grades, que poderiam se transformar em um livro lindo também. Eu adoraria ter um livro desse tamanho. Rato Branko Edições, vamos lá!

Raul
“Rato Books”

Pablo
Das grades das janelas do Rio, você agora se aproxima das grades de Salvador. É óbvio que há uma diferença entre as duas séries. Você também é outra pessoa, vinte anos depois, e é outra cidade, que, de alguma maneira, se torna essa história de amor, tanto por uma cidade quanto por uma pessoa. Por isso, acho que há algo lindo nisso, que vai formando círculos de relações.

Pensei muito também na história do ferro em Salvador. A história de Ogum, que é o Orixá do Ferro, da tecnologia, e que comunica essas tecnologias. Todos aqueles artistas que historicamente trabalharam originalmente como ferreiros também faziam figuras e ferramentas para os Orixás, utilizadas nas cerimônias do Candomblé, penso, por exemplo, em José Adário “Zé Diabo” e em toda a história de artistas que trabalham com ferro em Salvador. 

Então, por um lado, penso se, de alguma maneira, isso te influenciou ou se você teve algum contato com essa parte da cultura material de Salvador. E, se não, acredito que seria interessante pensar em um futuro contato ou em alguma relação futura para continuar explorando. Nesse sentido, não sei se você conhece a Rebeca Carapiá?

Raul
Sim, eu estive com ela uma vez. Ela inaugurou uma exposição agora em Inhotim, né?

Pablo
Sim,  é uma artista jovem, e mulher que trabalha também com ferros, eu curto muito do trabalho dela. 

Raul
Eu conheci ela e a companheira com a Luísa Duarte.

Pablo
Então, o que há de interessante é como existe essa relação com a história do material do ferro. Além disso, muitas vezes o que parece ser ornamentação nas janelas servia para transmitir outras histórias. Por isso, acho que seria uma linha interessante de trabalho que ainda dá para continuar explorando.

Raul
É, a minha relação com essa exposição inaugura uma espécie de diálogo com a cidade, uma homenagem a ela. Ela surge a partir da energia que desenvolvi em minha relação com Salvador. No entanto, tenho um respeito profundo e me sinto como se estivesse iniciando essa relação. Por isso, não digo que é inspirado em Salvador; ela vem de uma energia que estou construindo com a cidade, com os artistas que conheci e os lugares com os quais estou criando proximidade.

Fiz uma doação para a Orquestra NEOJIBA, uma escultura de grande escala, porque vi um documentário sobre eles. Não me lembro exatamente do bairro, mas eles têm uma sede fantástica, com auditório, teatro e sala de concerto projetados por um renomado arquiteto, especialista em engenharia de áudio, que cria as maiores salas de concerto.

Essa relação com o ferro e a tradição do aço é algo que compartilho. A minha grade que está lá é uma grande pintura colorida, não é mais um objeto físico, como a grade que observamos lá embaixo. Aquela série de fotos que tenho do Rio faz um comentário sobre a crise das políticas de segurança pública; quando o crime e as políticas públicas fracassam, a paisagem da cidade se transforma com a chegada de itens de segurança, como cabines, câmeras e grades. Essa transformação revela a deficiência, a fraqueza e a vulnerabilidade da cidade. Os condomínios começam a proliferar, e a letra do Marcelo Yuka ecoa: “Quem é que está preso no condomínio, é o cara que está do lado de fora ou é o cara que está do lado de dentro?”

Em Salvador, essa grade não gera o mesmo tipo de comentário; ela se transforma em uma obra pictórica, gerando uma imagem, uma pintura gráfica. É assim que vejo essa série, que se conecta com as janelas. Nessa exposição, consigo cruzar a cor e a sinalização das setas — vermelha e branca, vermelha e amarela — com a técnica que desenvolvi nas janelas, que é uma estamparia manual. É como uma gravura sem prensa, mas que possui um gesto manual, uma individualidade, um fazer manual.

As fotos das grades retornam, mas não mais como um comentário sobre segurança pública. Agora, são um comentário sobre o grafismo da cidade, sobre um desenho que se acopla à arquitetura de forma mais poética, talvez, e não brutalista. A Daniela Labra, no primeiro texto que escreveu sobre as grades, referiu-se a elas como apêndices da arquitetura. É algo que se acopla à estrutura, mas não foi projetado pelo arquiteto; foi feito pelo porteiro, pelo síndico ou pelo serralheiro. E que não é a arquitetura da cidade. Está no meio do caminho. É uma coisa pendurada na arquitetura.

Pablo   
Eu estou olhando aqui os desenhos que estão atrás de você e imagino como, de alguma maneira, poderia haver uma grade entre nós, pendurada. A grade, de certa forma, permite que você veja o que está do outro lado. Quem está dentro consegue ver um pouco do mundo de fora, e isso se torna uma espécie de instrumento de mediação. Não é aquela ideia da pintura como janela — a pintura clássica que é uma janela para outro mundo — mas sim a grade como um instrumento de mediação.

É interessante pensar nisso. A grade pode ser como um par de óculos que permite ver o mundo, permitindo que você olhe para dentro se está do lado de fora, ou olhe para fora se está dentro. Essa ideia de que esses trabalhos permitem ao público ver o mundo de uma maneira específica, mas também olhar tanto para fora quanto para dentro, é fascinante.

Acho que há uma dupla função aqui. Essas grades não são apenas desenhos, não são apenas pinturas; são instrumentos de mediação que possibilitam essa visão tanto de dentro para fora quanto de fora para dentro. E ao pensar sobre o que implica a grade, e como seus diferentes desenhos podem alterar a forma como percebemos o mundo, me pergunto qual é o significado disso tudo. O que importa é essa mediação como um instrumento que, de alguma maneira, protege, mas também aproxima, permitindo que se veja o que está dentro com uma certa distância, e que as pessoas também entrem nesse espaço.

Podemos pensar em prisioneiros, mas também em freiras, aquelas que vivem uma vida interior e podem ver o mundo exterior. Há algo que me interessa nessa reflexão, que não é apenas sobre desenho, serigrafia ou pintura clássica, mas sobre instrumentos de mediação. Você está repensando essa relação entre o que é o desenho, o que é a pintura, e também pode fazer o mesmo com a escultura. No outro dia, quando visitei seu estúdio, você comentou que são pinturas feitas por escultores. Agora procuro a citação exata do que você disse, mas a essência foi que, “minha ferramenta não é um pincel, não é a pintura; minha ferramenta é o alicate”.

Então, de alguma maneira, eu vejo uma linha que conecta os diferentes trabalhos. Queria ouvir você falar um pouco sobre como pensa o seu trabalho em termos de ser escultura ou não. Como você definiria os trabalhos que realiza hoje em dia?

Raul   
Desde o início, eu já havia estudado fotografia em cursos de fotografia e cinema, incluindo teoria e história do cinema. Depois, fui estudar arte e rapidamente comecei a aprender com o Ricardo Basbaum sobre performance, desenho, gravura e história da arte. Meu pai também pintava em casa, criando obras decorativas.

Pablo
O Basbaum era professor?

Raul
O Ricardo Basbaum era professor do Parque Lage.

Pablo
Ele é um pouco mais velho do que você. Então?

Raul
Sim, ele é quase dez anos mais velho. Essa geração — Barrão, Luiz Zerbini, Ricardo Basbaum, Beatriz Milhazes e Adriana Varejão — é uma década mais velha que eu, aproximadamente. Eu tive aulas com o Basbaum e José Damasceno. Eram apenas quatro alunos, mas tudo me interessava. Meu primeiro vídeo é de 1995, bem no início das minhas fotos. Eu já fazia fotos antes de estudar arte, então essa coisa multimídia é um traço meu.

Eu não sou um especialista. Chamo de escultura, mas não no sentido de esculpir. É uma escultura ampliada, um objeto também. É uma escultura feita da combinação de coisas, como Tunga dizia: um encontro de coisas. Contudo, há um lado tradicional que envolve apenas aço, remetendo a algo mais clássico, como a construção geométrica do Amílcar de Castro, mas não é exatamente isso. Eu não tenho dogmas; não quero ter uma escola ou um grupo. Por isso, me permito fazer essa pintura aqui, mas ao mesmo tempo a ideia da bandeira surgiu, e eu não vou deixar de fazê-la porque não se encaixa ou porque a galeria não acha legal. A liberdade é o meu maior patrimônio. Trabalho no campo da liberdade absoluta.

Nesse espaço, experimento tudo. Sou um pouco como aquele músico amador que chega em casa com vontade de tocar violão, porque precisa, pensando: “Putz, eu estou doido para tocar”, assim como você chega em casa com vontade de comer. Eu chego em casa com vontade de desenhar ou beber. É o mesmo impulso, e dessa anotação surge isso e aquilo. Às vezes parece não ter coerência, mas com o tempo você vê as conexões e coincidências, até mesmo coincidências assustadoras, às vezes. A bandeira furada, por exemplo, eu já fazia furos circulares em papel manteiga muito antes. Quando comecei a fazer isso, não percebi a semelhança (entre os dois), nem com as grades. Era, como mencionei, um simples presente de aniversário feito à mão. Comecei a fazer na cor preta, e ela perguntou: “Mas vai ser só preto?” Eu respondi: “Não, preto e vermelho!” Depois fiz o vermelho e mandei a foto. Ela disse: “Só preto e vermelho?” Eu falei: “Não, amarelo!” Então fiz o amarelo. É tudo muito trivial, do âmbito doméstico, familiar e afetivo. Não sou do dogma, não sou da disciplina; sou do caos. Não sou da introspecção, do segredo ou do mistério; sou da transparência, da colaboração e da inclusão. O ateliê é aberto. Você sabe, você frequenta. É até excessivamente aberto.

Na última festa, todas as salas estavam abertas durante a Art Rio. Não sei se você veio aqui, mas o segundo andar inteiro e o terceiro andar estavam acessíveis a todos. Tinha fila de pessoas no banheiro, e ninguém quebrou nada. Havia um segurança em cada sala, mas apenas um. Algumas pessoas ficaram impressionadas e perguntaram: “Você é louco?” Eu respondi: “Não, é uma festa no ateliê. Vou desmontar o ateliê para escondê-lo?” Você dá uma festa no ateliê, faz uma festa em outro lugar, mas no meio da festa as pessoas sobem, passam pelo ateliê e veem a arte. Numa festa numa galeria ou em um museu, o museu não pode fazer uma festa? Pode! Servem bebidas lá embaixo, e as pessoas sobem e descem. Nunca tive problemas aqui, em nenhuma das vezes. Uma vez roubaram um celular, mas até o seu foi recuperado. O vídeo me interessa; a pintura, por sua vez, era feita com setas, pintura industrial, spray, fita, rolinho. Não podia me considerar um pintor porque fazia pintura de setas.

Mas em Nova York, comecei a fazer a pintura das janelas. A pintura das janelas é feita com balde e água, sem fita; é uma experiência. É a tal da pintura do escultor, que lembra o Serra e o Amílcar, que pinta com vassoura. Então, eu pinto com madeira, pinto com borracha, pinto com o tal do alicate. Mas não paro; preciso fazer um vídeo porque vi algo, reuni cinco vídeos e, assim, um está aqui, vem o vídeo e depois vem uma foto. Isso, ao longo do tempo, né? Estou prestes a completar trinta e cinco anos de atividade, e você se dá o direito de ter essa liberdade. Não vou seguir algo só porque uma galeria diz: “Não, Raul, não faça isso, porque já tem muito; é melhor fazer aquilo.” A tendência do mercado agora é segurar e não soltar. Não escuto isso; escuto uma voz interior. Escuto meus pares, as pessoas que visitam aqui. Quero agradá-los, primeiramente, e também às pessoas com quem troco ideias. Quero estar satisfeito com a minha produção, sair daqui tarde porque isso ficou bonito. Se precisar, “amanhã pede pro Fernando subir aqui e descer isso que vai ficar mais legal.”

Aqui, esse lugar é para fazer coisas, fazer imagens, objetos que são chamados de arte. É a única coisa que sei fazer. Troco isso por dinheiro para viver e pagar minhas contas. Não faço isso apenas por dinheiro, mas troco por dinheiro para viver, porque o que sei fazer não sei fazer de outra forma. Mentira, eu também sei fazer festas, mas dá para conciliar.

Pablo
Essa ideia de estruturas — estruturas que balançam, estruturas que mediam a visão, ou seja, o mediador da visão — nos leva a algo que considero muito importante de seu trabalho: Raul, o artista, como criador de estruturas que não são apenas estruturas físicas ou objetos de arte, mas também estruturas de trabalho, estruturas de ação e estruturas de exposição. Penso no seu trabalho ao criar espaços de exposição.

Na minha primeira visita ao Rio de Janeiro, em 2001, tive a sorte de vir a este mesmo prédio, a este mesmo edifício, quando era um jovem de vinte e nove anos. Era minha primeira visita ao Brasil e ao Rio, e vim encontrar a Denise. Foi a Dominique Gonzalez-Foerster quem disse: “Você tem que conhecer a minha melhor amiga”, que é  a Denise Milfont. Aí, mandei uma mensagem pela internet — que já estava começando a se popularizar — e ela falou: “Ah, nós encontramos aqui no Agora/Capacete”, no espaço de exposição que existia aqui embaixo. Você fazia parte do Agora, junto com Ricardo Basbaum e Eduardo Coimbra, que trouxe uma exposição maravilhosa da Fernanda Gomes, que era linda.

De alguma maneira, você influenciou essa primeira visão e relação que tive com o Rio de Janeiro. Depois disso, você fez aquela exposição no hotel, transformou este edifício em ateliês no Rato Branko, onde dá espaço a jovens artistas. Como parte dessas estruturas, você criou o livro-catálogo chamado “Volume”, já estamos no Volume 4, que está a caminho, onde você não só fala do seu trabalho, mas também dá espaço a outras vozes e artistas.

De certa forma, você funciona também como um artista-curador, você é um pouco um agitador de tudo isso, permitindo que todas essas vozes criem polifonias, onde podem coexistir. Essa é a outra parte do seu trabalho que me parece tão interessante: fazer estruturas físicas que funcionam como objetos de arte, mas também estruturas físicas que funcionam como infraestrutura de uma cena local.

Além disso, acho que você mudou. Você não é o mesmo de vinte e três anos atrás, quando vim aqui pela primeira vez conhecer o Agora/Capacete. O tipo de arte que você mostra é diferente. Existe agora uma consciência social que mudou aqui no Rio. Nós não somos os mesmos; entendemos o mundo e as relações sociais, as relações raciais de uma maneira que não éramos capazes de perceber há vinte anos.

Raul
Lutávamos por outras causas. Agora, criou-se a condição para que o debate seja ampliado. Antes, a gente criava espaços de arte, mas agora há espaço para mais pessoas. Esses espaços, que antes eram reservados à elite, precisaram passar por lutas para que grupos chegassem aqui e que esse grupo de cima entendesse a importância disso. Acredito que é a mesma operação, a mesma luta que existirá em dez anos e que já existiu em outros períodos. Mas a luta para fazer arte é, fundamentalmente, lutar pela criação e ampliação do espaço de arte. Desde o início, quando o homem pintou na caverna, deve ter havido alguém reclamando. Não estava lá, mas imagino que alguém tenha dito: “Você tá rabiscando? Tá sujando! Você não foi caçar?” Essa imagem — que até o Almir Haddad repetiu uma vez — ilustra bem: desde que a arte existe, há uma perseguição a ela, há sempre alguém querendo derrubá-la. Portanto, fazer arte é lutar para constituir e expandir o espaço de arte.

A luta de agora é diferente da luta de dez anos atrás ou de vinte anos atrás, quando eu estava aqui jovem, criando um espaço alternativo ao circuito comercial, que na época era tímido e contava com poucas galerias. Não havia feiras de arte no Rio nem em São Paulo, mas acreditávamos que podíamos criar um espaço para apresentar arte de forma mais ágil e próxima dos artistas, trazendo um público mais jovem e interessado, sem a solenidade típica da Zona Sul. Assim, o foco era o Centro, com mais música e um pouco de festa. Era uma luta para nos tornarmos agentes novos em um circuito burguês já consolidado, que precisava de uma oxigenada, uma renovação, inspirados por Helmut, que na época nem era ainda namorado da Denise, quando criou o Capacete na Rua Paissandu, no Flamengo.

Helmut já havia realizado um projeto na Rua Paissandu, onde fez uma exposição com Ricardo Basbaum e Ana Infante, que foi fantástica. Depois, ele organizou uma exposição de pequenos desenhos do Marcel Dzama, e eu não tinha dinheiro na época para comprar; o Pedro Buarque comprou vários, e hoje valem uma fortuna. Assim, passamos a ser seguidores dos eventos do Helmut. Decidimos criar um projeto próprio: eu, Basbaum e Edu, que já tínhamos feito uma revista chamada Item juntos. Eu era frequentador de um dos projetos que Ricardo Basbaum conduzia, que incluía nomes como Brígida, Rosângela Rennó e João Modé, no Parque Lage, onde ocorreram palestras muito interessantes. A Visorama acabou, então me aproximei e decidimos fazer a Item.

A partir de Helmut, ele disse: “Vamos fazer juntos.” Ele havia feito uma exposição do Rubens Mano em Santa Teresa. Nós realizamos uma exposição minha e da Laura Lima na Fundição Progresso; Helmut encontrou esse prédio que estava para alugar, e o Agora/Capacete alugou o térreo. O Eduardo Coimbra ocupava uma sala, Paula Tropi estava ao lado, eu na frente, junto com Tatiana Grimberg, Marcos Chaves, Ricardo Basbaum e Carlos Bevilacqua. Depois, as trocas foram constantes. Você chega aqui e vê a exposição da Fernanda Gomes, que eu organizei. Para mim, Fernanda Gomes é o maior acontecimento da arte do planeta. Visitar o ateliê dela é o melhor lugar para ver arte. Eu sou devoto dela; Fernanda Gomes é uma religião para mim, assim como Chelpa Ferro e outros.

Esse grupo vai mudando, mas eu a amo. Consegui convencer os amigos a tocarem esse projeto juntos. Fizemos a curadoria coletiva, mas eu fiquei à frente. Essa exposição que você viu da Fernanda é muito marcante para mim. E acredito que esse espaço continua com a mesma energia. Quando você fala dos meus projetos coletivos de ativação no circuito, percebo que sou um artista que não quer estar apenas fechado no ateliê produzindo objetos para serem vendidos. Quero também ocupar um espaço que vejo mal utilizado. Criamos uma série de atividades aqui no Rato Branko; eu e o Cabelo surgimos com uma ideia, depois adaptamos, depois percebemos outras deficiências e assim por diante.

Ano que vem, vamos completar dez anos de atividades e já estamos preparando várias mudanças. Durante a pandemia, criamos o Rato Branko TV e uma loja online para vender arte, o que nos permitiu continuar produzindo conteúdo. Manuel fez várias exposições, além de festas, blocos de carnaval e outras atividades. Agora estamos passando por uma grande transformação para nos adaptar, porque é preciso. Acredito que posso passar o Rato Branko adiante para Jonathan, Dorey, e assim por diante. Provavelmente, me ocuparei com algum outro projeto de repercussão coletiva, de intervenção na lógica do circuito, porque esse circuito sempre precisa se alargar e se repensar.

Acredito que o artista tem essa capacidade de olhar de dentro para fora, de expandir, abrir brechas, criar pontes. Muitas vezes, não somos escutados. O mercado é muito profissional, com art advisors, galerias de mercado secundário e primário, e o curador da Bienal só fala com o galerista, não com o artista. Assim, vou acumulando experiências e criando conexões, tentando criar canais de comunicação para que o circuito fique mais forte, mais robusto, com mais diálogo, transparência e vitalidade. Porque isso é inerente à arte: o desejo de comunicação e de afetar o outro positivamente. Quando vemos muito negócio envolvido, surgem questões como o livro polêmico que saiu agora, “A Guerra do Museu”, que ainda não li.

Não conheço muito desse mundo; eu saio do Rio e vou para São Paulo. A primeira coisa que faço é visitar ateliês: vou ao do Guto Lacaz, do Felipe Cou, do Rodrigo Andrade, do Fábio Miguez e da Marina. Eles sempre perguntam: “O que tá rolando de bom?” Depois, visito o Auroras. Vou primeiro aos artistas, porque eles me dão um roteiro. Dizem: “Não pode perder isso na Pinacoteca…” Senão, corremos o risco de passar por filtros que podem ser enganosos. Vivemos, de fato, a volatilidade da ideia de arte, da experiência de arte, da imaterialidade, do tempo digital e da velocidade da revolução digital. Agora, com a inteligência artificial…

Pablo
Bom, estamos chegando ao final da nossa conversa, deste capítulo de Volume TV e Rato Branko TV. Vamos voltar um pouquinho e falar sobre a relação que estabelecemos com a Cristina Alban e como essas pinturas se conectam com ela, tornando-se uma homenagem a ela.

Raul
Sim, eu fiz os primeiros desenhos, que têm metade do tamanho dos atuais, como presente para Isabela Capeto. No dia 24 de janeiro de 2023, convidei Cristina e Roberto para um almoço em homenagem a Isabela, que aconteceu na casa de Santo Antônio. Os desenhos estavam expostos na parede. Assim que Cristina entrou, disse: — “Que lindo! O que é isso?” Eu respondi: “Esse é o meu presente para Isabela, uma nova série que estou fazendo.” E ela comentou: “Que legal! Vamos pensar em mostrar isso?” Conversamos animadamente durante o almoço.

Na verdade, voltei para o Rio pensando que era um simples presente, sem a intenção de transformá-lo em uma obra para o mercado ou em uma exposição. Era uma obra gráfica de aniversário para Isabela. Porém, durante minha estadia em Salvador, percebi a conexão entre o desenho urbano das grades e o grafismo que eu havia criado no meu ateliê na Lapa, sem considerar as grades de Salvador. Fotografei mais grades, janelas, portas e a arquitetura do casario antigo dos bairros históricos.

De volta ao ateliê, transformei esse presente — um conjunto de 14 obras — em uma nova série que dobrou de tamanho e incorporou desenhos inspirados nas fotos. Comecei a trocar mensagens com Cristina, enviando fotos e vídeos para mantê-la atualizada sobre o que estava acontecendo a partir daquele primeiro conjunto que ela viu em nossa casa em Salvador.

A ideia da exposição surgiu dessa visita e desse primeiro contato que ela teve com essa produção, além de uma série de conversas que vínhamos tendo no meu WhatsApp. Tenho vídeos em que explico a montagem, como a parede dobrou de tamanho e como os novos desenhos surgiram. Esta entrevista, que você dedicou a ela no início da nossa conversa, é uma maneira de reconhecer sua importância. Acredito que também devo dedicar a exposição a Cristina, pois ela está na gênese desse projeto. O desejo e a troca que tivemos, junto com seu entusiasmo, foram fundamentais para levar essa ideia adiante.

Pablo
Curiosamente, a última vez que vi Cristina foi pouco antes de seu falecimento, em junho de 2023. Fiz uma visita a ela e a Roberto Alban no Palácio Arquiepiscopal em Salvador. Na ocasião, estávamos pensando em projetos e discutindo a possibilidade de realizar uma exposição. Essa foi a última visita e o último contato físico que tive com ela. Cristina sempre estimulava a reflexão sobre projetos, mantendo essa energia vibrante, além de um profundo amor pelas artes e por Salvador, sempre desejando fazer algo pela cidade.

Raul
Uma energia propositiva, né? Construtiva…

Pablo
De trazer gente de fora, de fazer projetos. Eu adoro que não se trata apenas da entrevista, mas também da exposição que a homenageia, uma merecida homenagem. Acho que uma forma de encerrar é refletir um pouco sobre o que aprendi nesta conversa e durante a minha pesquisa sobre a sua obra. Uma coisa é conhecer o artista, como conheço você há vinte anos; visito seu estúdio e, como você diz, está sempre de portas abertas. Quando passo por aqui, muitas vezes entro e vejo o que você está fazendo. No entanto, as visitas aos ateliês, não substitui a pesquisa mais aprofundada da obra do artista e a reflexão sobre o que o artista tem produzido ao longo dos anos. Além das relações que se criam entre os trabalhos, aquilo que sempre me interessou é tanto o Raul artista, quanto o Raul criador de estruturas de mediação, e acho que os dois estão totalmente conectados. Para mim, isso se confirma agora que estamos terminando esta conversa: a importância do trabalho que você faz, como artista e como criador de estruturas sociais, artísticas, de comunicação e de interação. Tudo isso faz parte de uma prática ampliada que considero fundamental, um modelo de artista que vem de você. Com isso, gostaria de encerrar, agradecendo por essas estruturas que você cria. Estruturas que balançam, mas não caem.

Transcrição por Lucas Rennó e revisão e edição de texto por Jonathan Nunes.

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