TOQUE DEVAGAR

Com seis esculturas cinéticas monumentais construídas com tubos e braçadeiras, Toque Devagar ocupa a Praça Tiradentes, ponto histórico no Centro do Rio de Janeiro. As obras cinéticas são distribuídas simetricamente em torno da escultura de D. Pedro I (Maximiano Mafra, 1862), no centro da praça. 

A mostra pública é acompanhada da exposição Processo, com curadoria do arquiteto Pedro Rivera, no Studio X, laboratório de arquitetura da Universidade de Columbia localizado na mesma praça.

Raul Mourão e sua arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro

por Michael Asbury

Denominada Praça Tiradentes em 1890, em antecipação ao centenário (1892) da execução do mártir da Independência, o novo nome livrou-se das associações monárquicas do antigo, Praça da Constituição, que celebrava o local onde D. Pedro I, em 1821, jurou fidelidade à constituição portuguesa da sacada do Real Teatro São João (onde atualmente se encontra o Teatro João Caetano).

Renomeada um ano após a Proclamação da República, a Praça ficava, assim, desvencilhada de sua conotação monárquica, enquanto a referência à independência da nação era mantida. Esta última estava associada ao local desde 1862, com a instalação da estátua equestre de D. Pedro I, representado no momento em que declara “independência ou morte”. A estátua em si não é insignificante. Foi a primeira a ser erguida no Rio de Janeiro, por meio de um concurso internacional, cujo vencedor foi Maximiano Mafra. Executada em Paris por Louis Rochet, o projeto contou com a colaboração de um jovem aprendiz, Augusto Rodin.

Em 1865, alegorias que representavam a Justiça, a Liberdade, a Igualdade e a Fidelidade foram erguidas nos quatro cantos da Praça. Entretanto, com a deterioração do centro da cidade no decorrer do século XX, os arredores da Praça passaram a ser associados a moradores de rua e prostituição. Assim como o hipócrita pastor protestante Raimundo, do conto de Rubem Fonseca “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro” (1994), cujo sonho era ser transferido para a Zona Sul da cidade, talvez não seja surpreendente que tais símbolos das “virtudes das nações modernas” fossem considerados mais apropriados ao refinado bairro de Ipanema, onde permaneceram, na Praça Nossa Senhora da Paz, até que a recente renovação da Praça Tiradentes fosse concluída. Fonseca capta a condição geral de decadência e degradação em que se encontrou o centro histórico durante o final do século XX por meio do personagem de Epifânio, um aspirante a escritor (que adota o pseudônimo de Augusto), assim como outros personagens secundários que representam sentimentos em relação à região que vão da nostalgia e melancolia à indiferença. De fato, um tanto quanto profético dada a proximidade dos jogos internacionais, Benevides, um mendigo no conto de Fonseca, expressa sua relutância em ser desalojado do local devido aos preparativos para um congresso internacional.

As instalações esculturais monumentais de Raul Mourão, concebidas especificamente para a Praça Tiradentes, à primeira vista podem parecer incongruentes ao estilo neoclássico recentemente renovado. Todavia, as aparências podem enganar. Inicialmente, o conto de Fonseca vem à mente pela associação com uma obra anterior de Mourão, em que o artista segue, com uma câmera de vídeo, um cão vira-lata, do amanhecer ao anoitecer, enquanto este vaga sem rumo pelo centro da cidade (Cão/Leão, 2002). Esse esforço quixotesco lembra o de Augusto, personagem de Fonseca, que acredita que o único meio de apreender a essência do lugar através de seus empenhos literários é andando pelas ruas, imergindo-se na malha urbana e em seu povo.

Se traçarmos uma genealogia para as estruturas atuais de Mourão, erguidas temporariamente na Praça, podemos concluir que surgem da própria imersão do artista nas ruas do Rio, e, como tal, associações com a própria trajetória simbólica da Praça vêm à tona.

De acordo com Paulo Herkenhoff, as esculturas de ferro de Mourão, que começaram a ser produzidas em 2001, tratam “de uma geometria do medo em contexto histórico preciso” #. A expressão foi cunhada por Herbert Read como um meio de descrever como esculturas de Lynn Chadwick, Reg Butler e Kenneth Armitage estavam relacionadas ao sentimento de ânsia após a segunda guerra mundial na Inglaterra, durante os anos 1950. Herkenhoff a insere no contexto do trabalho de Mourão como uma justaposição da estética minimalista e das estruturas informais erguidas para proteção da propriedade em meio à ânsia da classe média no âmbito das agudas divisões sociais brasileiras.

Obras como Buraco do Vieira (2001), Grades (2001) e Entonces (2004) demonstram a evolução no seio dos processos do artista, partindo das formas apropriadas de grades de proteção para aparelhos de ar-condicionado, automóveis etc., e chegando a estruturas cuja principal arena de diálogo se torna  a da arte e sua história. Recentemente o trabalho progrediu ainda mais, incorporando elementos cinéticos e convidando o visitante a intervir, a gerar movimento. Ainda preservando um diálogo com a história da arte, essas estruturas se distanciaram ainda mais de suas conotações inicias de contenção e proteção. De certa forma, perderam sua relação com os objetos de segregação, divisores entre o exterior e o interior, enquanto ganharam uma leveza e um humor que trai o peso físico de sua materialidade e o peso simbólico de suas – agora crescentemente distantes – origens formais.

Além do movimento inerente aos próprios objetos, que os dota de um caráter transitório, essas estruturas são fruto de um processo simbólico de transformação ainda em movimento, que todavia, não foi esgotado. Desta genealogia que inclui a conjunção propositadamente irônica das características sociopolíticas, históricas e físicas evocadas pelo próprio objeto, emerge uma nova manobra poética que ganha sua escala pública pela introdução de novos materiais e processos de construção. Ou seja, o artista abandona o processo original de soldagem e pintura do ferro, ganhando assim, em escala e praticidade de construção. Essas estruturas temporárias, brutas e monumentais são construídas com os elementos básicos de andaime enquanto mantêm a forma e os mecanismos das obras cinéticas anteriores. Curiosamente, o novo material restabelece a relação com as fachadas do prédio: a interface entre o privado e o público. Agora, todavia refere-se bastante abertamente ao processo de transformação e renovação mais do que ao medo e à proteção. No contexto da Praça Tiradentes, também encontramos nestas obras a correlação entre a aceleração centrífuga da própria cidade. A tendência da cidade a expandir-se em direção ao subúrbio “esvaziou” o centro de seus moradores tradicionais, transformando a configuração social do espaço. Pode-se ver a Praça Tiradentes da mesma maneira que uma das obras anteriores de Mourão, como Cadeira (2004), que apresenta um espaço que foi esvaziado de seu conteúdo original, mas que ainda mantém sua forma enquanto espera para assumir sua nova identidade.

A reconfiguração dinâmica do espaço social da Praça e suas propriedades adjacentes trazida pela renovação busca recuperar uma visão específica do passado e, ao mesmo tempo, abordar uma questão social no presente. Enquanto inevitavelmente nos traz novas formas e processos de segregação, essa reconfiguração não é de forma alguma um novo fenômeno, muito pelo contrário, é um processo intrinsecamente associado à história da própria Praça Tiradentes.

O termo scaffold (em inglês andaime ou cadafalso) tem dois significados bem distintos: é uma plataforma temporária para sustentar operários e também uma estrutura erguida para a execução de prisioneiros, normalmente por enforcamento. Ainda que a associação se perca no termo português andaime (que, apropriadamente, se refere também ao ato de andar), a coincidência basta como desculpa para pensar a conjunção de ambas as histórias, a da praça pública e a de uma série específica de obras, dentro da trajetória de um artista.

Os andaimes temporários que cobriram as fachadas dos prédios históricos do entorno enquanto eram renovados reemergem, na Praça, como material constitutivo das instalações de Raul Mourão. Representando uma metáfora do passar do tempo impiedoso, com as estruturas que balançam de um lado para o outro, o movimento pendular evoca o vai e vem da própria Praça: do espaço intersticial do mercado no Rossio Grande e das ocupações ciganas do século XVII à transposição simbólica da fidelidade à monarquia para o nacionalismo republicano do século XIX, através da associação ao enforcamento de Joaquim José da Silva Xavier. A restauração de hoje meramente inaugura o próximo estágio do futuro da Praça. Assim como as gigantes esculturas cinéticas de Mourão, a Praça foi esvaziada de sua significação prévia, enquanto aguarda ganhar nova relevância simbólica. Em outras palavras, está à mercê dos que a movimentam.

Michael Asbury

Crítico, historiador de arte e curador. Membro do corpo docente de Camberwell, Chelsea and Wimbledon (CCW) Graduate School e vice-diretor do Research Centre for Transnational Art, Identity and Nation (TrAIN), ambos na University of the Arts London (UAL).

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