Abre o Jogo
por Luisa Duarte
A presente exposição é o terceiro ato de uma tríade cujo início se deu com “O menor carnaval do mundo”, em Salvador, passou por “Evite acidentes”, em Belo Horizonte, para então chegar ao Rio de Janeiro, na Galeria Lurixs, onde Raul Mourão realiza “Abre o jogo”. Em comum, nas três mostras o artista fez do espaço das galerias uma espécie de prolongamento do seu ateliê. Mas tal prolongamento não significa o mero ato de reproduzir o espaço de trabalho no cubo branco, mas sim de compartilhar a (abrir o jogo da) dinâmica de aproximações e diálogos entre diferentes obras tal como ocorre no cotidiano do seu estúdio.
Se concordamos que a rua é onde tudo começa na obra de Mourão, fica nítido em “Abre o jogo” que a aliança com o que é da cidade, do alarido, da dimensão pública não se opõe, mas, ao contrário, acolhe o que é da ordem do introspectivo, da delicadeza, do que fala mais baixo. No jogo de Mourão, o grande e o pequeno, o rápido e o lento, o pesado e o leve, o forte e o frágil caminham juntos.
Um exemplo desse trânsito se dá em The new brazilian flag (2019), em que o artista faz um único e certeiro gesto através do qual retira da bandeira do Brasil o seu círculo central e assim subtrai o lema positivista – ordem e progresso. Criado em meio aos últimos anos sombrios que assolaram o país, o trabalho se apropria de um segmento de tecido que traz consigo o emblema de uma nação e, com um corte seco, dá a ver simultaneamente o abismo no qual entramos, a precariedade que nos cerca e a chance de nos reinventarmos, afinal o oco que agora ocupa o centro da bandeira pode vir a ganhar novos e inauditos dizeres. Ao longo do tempo, esse trabalho ganhou diversos modos de aparição no mundo – como múltiplo, como fotografia, como intervenção pública. A repetição de um mesmo procedimento em diferentes linguagens e escalas é uma marca da produção de Mourão. Estamos aqui distantes do fetiche que envolve a aura da obra de arte e mais próximos do fazer característico da cultura pop com seus diferentes níveis de reprodutibilidade e disseminação.
A persistência de um mesmo motivo, e sua variação em vários meios, pode ser vista na série SETADERUA, iniciada no remoto ano de 1989. Em “Abre o jogo”, esta comparece em pinturas de diferentes tamanhos e também como fotografia. Aqui, o signo visual próprio do tecido urbano tem a sua utilidade desfeita em nome de uma constante reelaboração formal. Se nas cidades as setas servem para orientar, nos trabalhos de Mourão o que vemos são antes desvios poéticos que miram grafismos, composições e jogos cromáticos em uma sucessão prolífica que conduz à lembrança de diferentes artistas, de Daniel Buren a Raymundo Collares, de Waldemar Cordeiro a Judith Lauand. Vale notar como, nas pinturas sobre tela, não há qualquer vestígio manual, como se o dado de anonimato característico das ruas tomasse conta do ato pictórico. Esse caráter maquínico, por sua vez, doa aos trabalhos um senso de ordenamento que contrasta com a imprevisibilidade característica do espaço público que nos rodeia.
O convívio entre opostos prossegue nas esculturas cinéticas de aço corten. Nas peças de grande escala, surpreende a conjunção entre peso e leveza – a rigidez do material ganha maleabilidade através do movimento. Movimento que requer atenção de quem toca. Nas palavras de Eucanaã Ferraz: “O aço balança, brinca, responde, o que era inflexível convida para a dança. Mas é preciso cuidado porque é leve, porque é frágil; porque é grande, porque é pesado.” Ao solicitar que meçamos o quanto de força empreendemos a cada vez que as tocamos, Mourão introduz um tanto de delicadeza e proximidade diante de obras que poderiam suscitar antes inibição e distância. E a torção prossegue quando o artista reduz a escala e coloca as esculturas em diálogo com objetos já existentes no mundo, como por exemplo garrafas de vidro ou vasos de barro. Em um equilíbrio tênue se encontram a forma geométrica impenetrável e o frágil índice da vida mundana atravessado por seus diferentes usos.
Certa vez foi observado que o fato destas esculturas terem como origem desenhos do artista poderia contribuir para a leveza que nelas enxergamos. Ou seja, na gênese dessas obras se encontra um traço ensaístico, amigo do risco, do acaso, pousado sobre a fina folha de papel. Papel que está impregnado na produção de Mourão desde sempre e comparece em “Abre o jogo” na série Janelas. Se na sua obra nada é fato isolado, pois tudo se interliga, comunica, conversa, atrita, toca, roça, quer trocar ideia, com as Janelas não é diferente. Estas são desdobramentos dos seus trabalhos em torno da grade. Enquanto as esculturas de ferro apresentavam uma “geometria do medo em contexto histórico preciso”, essas espécies de monotipias instauram um outro deslocamento da forma geométrica. Aqui, a tinta acrílica preta decalca grids que forjam janelas capazes de descortinar uma multiplicidade de paisagens gráficas. Parecidas visualmente, são sempre diferentes. No lugar da totalidade esperada do grid, entra em cena a singularidade que escapa às totalizações.
O título da presente exposição, “Abre o jogo”, remete à ideia de compartilhar com o público o que costuma estar circunscrito ao ateliê. As obras até agora citadas já foram exibidas anteriormente, outras tantas se juntam a esse grupo, mas o que mais importa é o modo como estão apresentadas e suas vizinhanças no espaço. Ao reunir um conjunto vasto da sua produção com vias a estabelecer novos diálogos e ao refazer situações que vemos no ateliê, como por exemplo a mesa povoada por vários pequenos trabalhos, Mourão reafirma um dos métodos mais caros ao seu programa poético, aquele que pensa cada obra não como uma unidade isolada, mas sempre em relação com as demais. Não parece forçado pensar que essa forma de conceber o seu fazer artístico se expande para uma atuação na cena cultural que está sempre ativando colaborações.
Nesse sentido, Relixo (2021) condensa muito do que está em jogo em “Abre o jogo”. Feito em parceria com Thiago Tambellini, o vídeo apresenta fragmentos de imagens em movimento captadas por Mourão em celulares e câmeras portáteis ao longo dos últimos dez anos. Sabemos como as imagens da era digital guardam consigo um paradoxo: estão armazenadas para sempre nas nuvens de bytes, mas dificilmente serão reencontradas. O artista reverte o destino que as relega ao esquecimento, revira o lixo e o edita em uma colagem que deslinda a natureza do seu olhar: aquela a um só tempo atenta e generosa diante das mais diferentes experiências – a dança na Lapa, a rosa que balança com a brisa, o futebol das crianças, as esculturas em meio à natureza, o filho jogando video game, os amigos retratados em pinturas, o canteiro em obras, o paletó nu em plena rua, a moça que canta no metrô de Nova York etc. Ao visitar o passado a fim de desenhar o porvir, ao desfazer hierarquias, ao juntar o que pertence à esfera pública e o que nos fala daquela esfera doméstica, ao congregar ruído e murmúrio e, assim, instaurar aproximações inauditas, Relixo emula a operação realizada na exposição como um todo.
Ao abrir o seu jogo, o artista nos endereça um acontecimento que, sem se valer de qualquer gesto literal, se coloca nas antípodas de uma época marcada pelo desejo regressivo de separação, de união pelas similaridades e rejeição às diferenças. As vizinhanças entre opostos instauradas por Raul Mourão ao longo de toda a sua produção nos recordam que é na incômoda e conflituosa, prazerosa e sedutora proximidade – e não na segura e asséptica distância – que podemos, enfim, despertar para a beleza insuspeitada do que nos rodeia.